Resumo
Este artigo refere-se a trabalho com o mesmo título apresentado pela autora no XI Encontro - VIII Congresso Nacional de Gestalt-terapia (Rio de Janeiro, Setembro, 2007). O trabalho constituiu-se num fórum apresentado em conjunto com a psicóloga Melanie Sampaio, que apresentou um relato clínico. A parte aqui desenvolvida corresponde à respectiva fundamentação teórica desenvolvida pela autora para a discussão.
Palavras-chave
Hipermodernidade – infância – educação hipermoderna – família hipermoderna.
O Contexto Hipermoderno
Hipermodernidade é a denominação dada por Gilles Lipovetsky (2004) ao contexto da sociedade ocidental contemporânea. Com esta expressão, o autor tem como proposta demonstrar que está em curso nos últimos anos, não uma ruptura e, sim, uma intensificação das características da Modernidade e um acirramento de paradoxos.
Lipovetsky caracteriza a Hipermodernidade observando que está em curso uma nova etapa do capitalismo, ainda fundamentada pela lógica do consumo, agora hiperconsumo, acentuando-se a noção de descartabilidade. Fase que também se configura pela invasão da mídia em todos os cenários, o foco no desempenho pessoal, o narcisismo exacerbado, e a intolerância às pequenas diferenças. Assim, a infância que observamos hoje se desenvolvendo no contexto da família hipermoderna, tem características muito particulares.
Nós sabemos que a educação e a família, desde suas origens são “locus” da tradição. E por mais que se tenham modificado, ao longo da civilização, tanto as práticas e os métodos educativos, como as estruturas e formas diversas de famílias, ambas são experiências que constituem nosso próprio processo de nos tornarmos humanos. A família pode ser considerada uma “instituição humana duplamente universal”, uma vez que “associa um fato de cultura a um fato da natureza”, sem o quê não haveria sociedades humanas. (ROUDINESCO, 2003, p. 16).
Sabe-se que a Modernidade trouxe consigo uma atitude de ruptura com a tradição. Uma atitude de busca pelo que é novo e uma idéia de que, o que é antigo, já não serve. E este processo se intensificou na Pós-modernidade, mas hoje temos a coexistência de valores polares e em diferentes graus de integração, que vão, por exemplo, desde as relações de casamento aberto, até o retorno à idéia de que a mulher deve permanecer virgem até o casamento ou outras práticas tradicionais.
Observando-se os fins do século XX e este início de século XXI alguns sinais indicam que as mudanças em curso podem ser ainda mais radicais nas práticas tradicionais de educação, pois estamos não só retirando toda tradição da educação e transformando-a numa mistura de estilos paradoxais, mas também estamos criando cada vez mais a impossibilidade de se pensar o sentido do vivido.
Por exemplo, pode-se observar a coexistência de práticas tradicionais, inclusive com o uso freqüente do castigo físico paralelamente às práticas diversas, com fundamentos baseados em uma cultura de consumo e narcisismo. Como por exemplo, premiar os filhos com todos os brinquedos possíveis ou fazer uma festa “dos sonhos” (diga-se “muito cara”) para um bebê de um ano. Tanto na clínica, quanto na escola, podemos observar diversos paradoxos presentes hoje na relação entre pais e filhos. E especialmente um grande contingente de pais que não conseguem se responsabilizar de forma efetiva pela educação de filhos e, quando o fazem, sentem-se perplexos e desorientados, sem saber se o que fizeram resultará em uma “boa educação”. Recentemente, em um artigo sobre a estréia do documentário brasileiro “Pr’o Dia Nascer Feliz” do cineasta João Jardim, puderam ser observadas algumas falas paradigmáticas da geração de jovens que hoje estão na faixa entre quinze e dezoito anos, e que foram registradas no filme.
Como Douglas, aluno de uma escola pública em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, que acha legal segurar uma arma no baile funk, porque assim todo mundo olha para ele. Ou o caso de uma menina, em que tal necessidade atinge níveis extremos, pois em seu relato refere que matou uma colega a facadas no corredor da escola, para que todos vissem.
Mas, ser visto demais também pode “pegar mal”. Rita de 16 anos parou de estudar depois de ser perseguida pelas colegas, porque era loura e mais bonita que as demais. Por outro lado, neste mesmo documentário aparece Thaís, de 15 anos, estudante de um colégio particular em São Paulo, cujas notas são ruins, mas que está muito preocupada em entender o que existe depois da morte. E outra menina que estuda demais, e que acha que por isto os garotos não olham para ela. Estes sinais são testemunhos de quê? Os pais não sabem mais educar? A escola está comprometida com um pacto burocrático medíocre? Os alunos são violentos e desinteressados? Ou tudo isto se refere a algo mais? Estamos diante de uma crise de sentido da nossa própria civilização?
Aqueles pais mais interessados estão em busca de um “saber como” educar, e produzem uma demanda que sustenta hoje uma série de publicações voltada para a educação na família e a orientação de pais, com um volume recorde de publicações. O grande número de publicações de livros de orientação de pais que tem saído nos últimos anos bate recordes de vendas de verdadeiros best-sellers. Como por exemplo, o livro “Quem ama educa” do médico Içami Tiba, que se encontra hoje em 160ª edição, com mais de 560.000 exemplares vendidos.
O que pode se constatar numa pesquisa preliminar é que a grande maioria destes livros serve a um projeto pedagógico contemporâneo, onde a eficiência na educação de crianças se mede em filhos bem sucedidos, criados sob a égide do narcisismo, capazes de tomar as relações afetivas sob a ótica de uma razão administrada na busca da “felicidade”.
Para ilustrar selecionei aqui um trecho de Içami Tiba, que em seu livro “Adolescentes – Quem Ama, Educa”, sugere a administração empresarial aplicada em casa a fim de se constituírem “famílias de alta performance”:
“As famílias hoje têm que ser de alta performance. Uma equipe em que todos os integrantes têm seus momentos de liderança pelas merecidas e reconhecidas competências”.
“Por mais progressiva que seja a família, se um dos integrantes for retrógrado cai a performance familiar. Porque nenhuma família que tenha um integrante químico-dependente, um presidiário, um transgressor social pode estar usufruindo da felicidade familiar, muito menos da comunitária”.
Adolescentes – Quem ama educa! Içami Tiba, p. 277-278.
Mas como isto pode se dar, num contexto que se caracteriza por ser líquido e flexível, de tal modo que o indivíduo é esvaziado constantemente de suas referências e, para evitar a percepção deste esvaziamento (ou mesmo como parte deste fenômeno), faz uso do consumo para seu preenchimento?
Quais as possíveis implicações disto nas relações familiares e nas práticas de educação? Se considerarmos, como faz Axel Honneth, que “a formação prática da identidade humana pressupõe a experiência do reconhecimento intersubjetivo” (Honneth A., 2003, p. 155) e que esta experiência se faz sentir de forma recíproca através das relações de amor, direito e solidariedade, pode se compreender a exacerbação atual da busca por reconhecimento intersubjetivo como efeito de subjetivação e como um sintoma da educação hipermoderna.
No contexto atual, as novas formas de reconhecimento intersubjetivo se referem ao ver e ser visto, calcadas no hipernarcisismo, de tal modo que inviabilizam a experiência de reciprocidade presente nas formas de reconhecimento intersubjetivo a que Honneth refere.
Este cenário traz a necessidade de práticas terapêuticas e pedagógicas que viabilizem tal reconhecimento intersubjetivo. E esta possibilidade está presente nas noções de relação Eu-Tu e Contato na Gestalt-terapia.
Nas noções de relação Eu-Tu, Buber já se preocupa com isto, quando se refere à dualidade entre o “ser” e o “parecer”. Buber expressa sua idéia de que a comunicação é algo maior do que aquilo que os sentidos podem captar, desta forma “a linguagem pode renunciar a toda mediação de sentidos e, mesmo assim, ainda é linguagem” (BUBER, 1982, p. 35). E “(...) onde a ausência de reserva reinou entre os homens, embora sem palavras, aconteceu a palavra dialógica de uma forma sacramental” (id, p.35). Deste modo, o que determina o encontro é a ausência de reservas, estar aí, verdadeiramente. Buber destaca fatores que impedem o crescimento do inter-humano: - a aparência que invade, a insuficiência da percepção e a possibilidade de que um dos parceiros queira impor-se ao outro.
Baseados nestes pressupostos, a Gestalt-terapia coloca em cena a relação Eu-Tu como uma experiência do inter-humano e como uma possibilidade de entrar em contato consigo mesmo, através da relação de alteridade, se aproximando assim da noção de reconhecimento intersubjetivo citado por Axel Honneth.
Na Gestalt-terapia o Contato (PERLS, HEFFERLINE & GOODMAN, 1997; PERLS, F., 2002) é um evento de auto-regulação organísmica e é através dele que é possível ao ser humano crescer e se desenvolver (física, mental e emocionalmente). Mas a cultura hipermoderna tem se caracterizado como um forte obstáculo ao contato e especialmente à possibilidade de reconhecimento intersubjetivo e à experiência do inter-humano.
A família deveria ser o lugar onde esta experiência e este reconhecimento fosse privilegiado. Mas em nossa prática clínica observamos um número crescente de pessoas com transtornos de personalidade, que chegam aos nossos consultórios, em idade cada vez mais precoce. Nossa observação vem apontando para uma impossibilidade de reconhecimento intersubjetivo, que se estabelece desde as primeiras relações entre pais e filhos, e que nos faz temer por uma sociedade em que as pessoas constituam comportamentos cada vez mais extremos a fim de obterem tal reconhecimento.